Ele lia Borges e Machado...
Ele lia Borges e Machado. Lia e relia as mesmas obras desde que completara a minha idade, como que empenhado em tê-las consigo sempre. Vivia num mundo repleto de Alephs e Quincas Borbas, emaranhado em pensamentos que seguido me oferecia como se fossem o seu reino. Para grande parte de nossos amigos e conhecidos, isso era o que meu pai tinha de mais interessante. Surpreendiam-se com a quantidade de sitações que trazia na memória e com o seu conhecimento dessas mesmas obras. Para mim, que já estava acostumado, esse era apenas mais um de uma série de hábitos e vícios; era parte da nossa rotina, assim como o café preto que tomavamos todas as manhãs e os bordéis baratos que visitávamos nos sábados à noite.
É engraçado ver as faces dos meus amigos quando eu conto essa parte... A maioria simplesmente não consegue entender a vida sem uma figura materna. Quando minha mãe morreu - eu tinha onze na época -, meu pai não tinha como assumir o seu papel, mas fez tudo o que podia. Aos treze, me levou ao meu primeiro puteiro e explicou o que sabia sobre a vida. Passamos a noite conversando: ele falava, eu olhava gulosamente para os lados e me distraía, levdo por olhares e provocações nada discretas. Meu pai continuou falando até eu perceber que ele só iria parar depois que eu o escutasse. Ele dizia: "Filho, tu é livre pra tirar da vida a lição que tu quiser. Mas até tu ter vivido o suficiente, vou te oferecer algo pra colocar no lugar. Não abre a boca pra falar merda. Pensa primeiro, principalmente antes de agir. Sempre dá o máximo de ti, mas nunca para aqueles que não te merecem. Aos que provarem que merecem, guarda com carinho, mas evita ter mais amigos do que tu possa manter. Para saber escolher, dá ouvido a todos, mas voz a poucos. Acima de tudo, tenta ser fiel a ti mesmo, e assim jamais será falso com qualquer pessoa."
Acho que ele percebeu que essa última parte me havia tocado. Chamou uma menina que ele conhecia pelo nome, falou alguma coisa no ouvido dela e quando me dei conta havia embarcado para a última viagem da minha virgindade: três lançes de escada, cambaleados a seguir um par de pernas cujo rosto mal consigo lembrar. É engraçado como alguns detalhes se prendem com força enquanto outros se apagam com o tempo... O que me lembro, e provavelmente à força do nervosismo que tomou conta de mim naquela hora, é que foram 36 degraus. Uma subida ingime, rangida a cada passo e mística no melhor sentido da palavra - tanto que quando desci os mesmos degraus, eles já não tinham número, pois não importava mais a mim ou a ninguém contá-los. (Talvez Deus, se Ele existisse, pudesse dizer que eram exatamente os mesmos, que estiveram ali durante a minha saída e que lá permaneceram até o edifício apodrecer e ser abandonado pelas damas do ofício. Acho que não. Já não significavam nada a ninguém, já não havia mais quem lhes desse importância, quem lhes desse sentido. Se eles continuaram existindo por um tempo - ou se eles existem ainda - é unicamente na minha lembrança)
Mais tarde meu pai me contou que aquelas palavras haviam sido tiradas de Shakespeare, roubadas da boca de Polônio e adaptadas na medida do possível. Mas afinal, melhor emprestar os valores dos outros do que viver perdido num mundo sem valores. Em seguida, ele me explicou que optava por esse sexo descompromissado e sem sentimentos para dar valor à imagem da minha mãe - não queria lhe arrumar uma substituta, desrespeitar sua memória ao encontrar alguém pior (ou pior ainda, alguém melhor...).
Talvez o lado mais interessante em ter um pai aspirante a escritor fosse essa espécie de agnosticismo com que ele substituia a tradicional educação cristã: minha religião se tornou, desde cedo, a palavra. Com seus próprios mistérios, com seus próprios segredos, aprendi sobre o bem e o mal através das vidas que a leitura me despertava. Assim, eu despertava também.
Até hoje, no entanto, tenho dificuldade em dissociar meu mundo das minhas leituras, bem como em separar meu pai dos autores que ele citava e em quem ele se inspirava. Quanto dele foi escolha e quanto foi espelhamento? Quando falava e escrevia, fazia de cada frase obra sua, se apoderava de clássicos e os tomava como seus. Por muitos anos enquanto criança não pude acreditar que outrou homem que ele houvesse dado vida a Julien Sorel e ao coronel Aureliano Buendia. Ainda hoje tenho difculdade em aceitar que obras como a Odisséia e a Morte em Veneza sejam frutos do trabalho de um outro homem, quanto mais de outros homens. Livros como esses são pais do homem, jamais seus filhos, e foi isso que eu aprendi com o meu. A literatura é um mero reflexo do universo que nos cria, o qual lutamos para botar no papel da forma mais clara possível.
1 Comments:
Gostei do texto...
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