Quantas perguntas?

...são necessárias para se chegar a uma resposta?

28.3.07

Uma menina...

Dallas esperava o vôo das 23h para São Paulo quando ouviu seu despertador tocar dentro da mala. Abriu-a às pressas, desligando o relógio apenas para constatar que ele estava desrregulado e marcava 8h. No saguão do aeroporto, um grande marcador analógico marcava 3h. Ao lado, uma lista de saídas e chegadas repetia a intervalos regulares que todos os aviões estavam atrasados.

Sentado com a bagagem entre as pernas, entretanto, pouco se importava. Ele estava de olho na menina de cabelos negros. Fingia ler uma edição surrada de 1984, tornando a buscá-la por sobre o livro sempre que virava uma página. Fazia 20 minutos que folheava compulsivamente, e somente quando chegou à contracapa percebeu que ela sorria de leve.

Antes que tivesse tempo de pensar numa abordagem, viu a menina se levantar e ir em direção ao único café aberto. Sem dar atenção a nada, levantou-se e se posicionou atrás dela na fila. Como para tomar coragem, aspirou o ar com as narinas abertas e mergulhou no mistério do perfume seco que ela exalava. Se tivesse podido vê-la de frente naquele momento, teria percebido que ela sorria.

Esperou até que ela tivesse feito seu pedido – um expresso duplo – e antes que a atendente registrasse acrescentou: "Outro com chantilly". A menina de cabelos negros se virou meio surpresa, e eles se encontraram face a face numa distância constrangedora. Ainda assim, ela sorriu. "Posso lhe oferecer um café?", perguntou Dallas.

Ela fez que sim com um movimento curto do pescoço, sem deixar de fitá-lo. Trocaram alguns comentários, quase lugares-comuns sobre aeroportos e a maldita crise aérea. Falaram sobre São Paulo e sobre 1984, que ele disse ser um bom livro. Ela mencionou que tinha namorado.

"Pena", acrescentou nosso personagem enquanto parecia perder a vista em um ponto indeterminado do chão. A menina de cabelos negros parou de sorrir.

Nessa hora, o leitor tem a liberdade para imaginar o que se passou dentro da cabeça dela. O narrador continua sem dar ouvidos às perguntas.

Ela o pegou pelo braço e Dallas se virou tão rápido que um arrepio ainda percorria suas costas quando reparou que a menina de cabelos negros tinha voltado a sorrir. "Desculpa, não quis passar uma falsa impressão. Em outra situação, quem sabe..."

A frase ficou no ar, parecendo incompleta em meio aos ruídos do saguão. Antes que algo mais fosse dito, ela estava de costas e se afastava a passos largos. Dallas reconheceu nessa evasão uma mulher interessante, e percebeu então que ela não era tão menina assim. Talvez algo de verdadeiro houvesse pairado entre os dois, e se apenas a situação fosse outra, quem sabe... Se ele tivesse podido vê-la de frente naquele momento, contudo, teria percebido que ela ainda sorria.